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Pesquisa por antepassados revela colônia modelo

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Movimento de imigrantes na Estrada de Ferro Dom Pedro II e uma fotografia da Usina Central de Porto Real situada nas margens do Rio Paraíba do Sul

O que começou com uma busca pelas origens familiares revelou não apenas quatro bisavôs italianos, mas uma história de coragem, exploração, resistência e superação. Um projeto inicialmente pessoal, que desvendou personagens surpreendentes, fatos inusitados e até armações governamentais, sintetizados na trajetória de uma colônia fundada com o objetivo de ser modelo da imigração no império de Dom Pedro II. Assim, a pesquisa resultou no livro “A Colônia Real – História do núcleo modelo da colonização no império de Dom Pedro II” (350 páginas, editora Uiclap), do jornalista Diogo Tavares. Foram muitas surpresas e correções de crenças estabelecidas na tradição oral. A primeira grande revelação foi que o município de Porto Real (RJ), conhecido hoje pela forte tradição dos imigrantes italianos, não surgiu com colonos desta nacionalidade.

Caso único do programa de colonização do Império do Brasil, o assentamento foi criado em maio de 1874, nove meses antes da chegada dos italianos (fevereiro de 1875), e tinha o objetivo assumido de abrigar imigrantes de várias nacionalidades visando promover um exemplo de sucesso da imigração, mostrando assim como o Brasil era um bom destino para aqueles que desejavam deixar o continente europeu. Inicialmente os lotes de terras foram distribuídos para cidadãos na maioria de origem francesa ou suíça, além de espanhóis, portugueses e uma família inglesa. Oficialmente os italianos foram mandados ao local para ficar de “quarentena” até que reduzisse a incidência de febre amarela que assolava o Brasil. Ocorre, no entanto, que houve a determinação de arregimentar exatamente 50 famílias do norte da Itália e na fundação da colônia se levantou precisamente a disponibilidade de área para mais 50 lotes.

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Decreto de fundação da Colônia Porto Real em maio de 1874, cerca de nove meses antes da chegada das famílias italianas

Outra diferença da maioria dos núcleos de colonização na época é que a colônia de Porto Real foi implantada em uma fazenda pertencente ao próprio governo e que possuía até um engenho sucateado, que o império se comprometia no estatuto de fundação a reativar. O terceiro detalhe foi implantar o núcleo perto da estrada de ferro e da corte, para uma maior fiscalização do poder público, evitando problemas que vinham ocorrendo em muitos assentamentos em fazendas particulares de regiões remotas, onde o péssimo tratamento dos proprietários vinha prejudicando a imagem do país como destino de imigrantes.

É importante lembrar que somente em 1888 o Brasil deixou de ser um país escravocrata e as garantias contratuais e trabalhistas eram muito precárias. Três meses após chegar, os italianos pediram ao governo para ficar definitivamente naquelas terras e foram rapidamente atendidos. Mas o que parecia um benefício, o governo como credor, acabou se tornando uma armadilha. A maioria dos imigrantes confiou na promessa de ativação do engenho e optou por plantar cana. Acabariam perdendo parte da safra diante da morosidade oficial em viabilizar o maquinário.

Além disso, cinco anos após ser fundada a colônia foi emancipada, com o império passando a concessão do engenho a um empresário português, Angelo Eloy da Camara, que ganhou ainda monopólio na produção e beneficiamento, privilégios no transporte ferroviário e até o direito sobre as terras adquiridas pelos imigrantes a título de hipoteca. Tais poderes incluíam questionar se os lotes estavam sendo cultivados conforme o contrato e retomar as terras daqueles que não tornassem suas propriedades adequadamente produtivas.

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Clementina Tavernari, que chegou ao Brasil em 1851 como Adelina Malavasi, e Enrico Secchi com os irmãos e trabalhadores do Pastifício Fratelli Secchi

A concessão seria duramente criticada pelos jornais de oposição. Seguiu-se uma temporada de perseguições e conflitos, durante a qual muitos franceses abandonariam seus lotes, com uma grande parte até retornando ao país de origem. Somente um navio deixou o porto do Rio com cerca de 350 franceses para ser repatriados. Já os italianos chamariam os primeiros senhores do engenho de “patronos do tronco e do autoritarismo”, lembrando o tratamento que os mesmos senhores davam aos escravos.

Com uma presença forte dos jornais publicados no Brasil em língua italiana, onde a colônia de imigrantes crescia rapidamente justamente por causa das guerras de unificação na Península Itálica, e boa cobertura da imprensa da corte, os colonos pressionaram o governo e conseguiriam gradualmente estabelecer condições mais humanas não só para os que cultivavam cana como para os que trabalhavam diretamente no engenho. Além de contar a evolução da colônia até os dias atuais, o livro revela detalhes dos seus grandes patronos. É o caso de Clementina Tavernari, que teve que se exilar após a revolta do Piemonte de 1848 e chegou ao Brasil em 1851 com o nome de Adelina Malavasi, na companhia do flautista pioneiro Achille Malavasi, e Enrico Secchi, professor primário contratado para organizar a viagem dos imigrantes no final de 1874, que se tornou depois um dos pioneiros da indústria paulista (Pastificio Fratelli Secchi), ajudou a fundar o Hospital Umberto I (depois Matarazzo), o Banco Popular Italiano e, como presidente, promoveu a compra da primeira sede do Circolo Italiano, sendo agraciado pelo império italiano com o título de comendador.

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Flagrante do embaixador italiano na época fazendo saudação nazista e decreto proibindo o uso de idiomas dos países inimigos na Segunda Guerra Mundial

Não foram poucos os desafios dos imigrantes e seus descendentes ao longo dos anos. Durante a Segunda Guerra Mundial os italianos foram impedidos de falar italiano ou deixar o distrito sem um salvo conduto da autoridade policial. Alguns, saídos da pátria muito antes da ascensão do fascismo, chegariam a se naturalizar brasileiros. Seguiu-se o começo da industrialização e o fortalecimento da cultura italiana, que se tornou hegemônica ao longo dos anos. Esta grande identidade seria um dos principais fatores na separação administrativa de Resende e transformação em município em 1995.

Enfim, a história de uma pouco conhecida colônia ‘multinacional’ ajuda a compor um mosaico da imigração no final do império e primeiros anos da república, os desafios e superação dos colonos, a composição da diversidade cultural brasileira e o papel do imigrante no desenvolvimento econômico do país ao longo do Século XX. Uma leitura essencial para quem quer compreender as motivações, os desafios e as contradições da imigração no Brasil, assim como saber mais sobre personagens pouco conhecidos que ajudaram a construir esta história.

A prisão da estátua do rei

Quando o chefe de polícia de Resende chegou ao distrito naquele dia todos já sabiam que não seria uma visita amigável. Afinal, desde a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, rompendo relações com a Itália, em 1942, a antiga colônia de imigrantes começara a passar por uma espécie de regime de exceção. Tudo era motivo para suspeitas de colaboracionismo ou espionagem, já que o governo fascista italiano se unira com a Alemanha e o Japão no chamado Eixo, ao qual o Brasil declararaia guerra após ter navios civis torpedeados em sua costa pela marinha alemã. Aquela gente, na visão do delegado de Resende, era de nacionalidade inimiga, portanto simpática ao fascismo e ao nazismo.

As restrições foram implantadas gradualmente, mas naquela altura dos fatos os italianos não podiam deixar o distrito sem permissão prévia da autoridade policial. Precisavam inclusive portar um passe livre, a título de salvo-conduto, caso precisassem ir à sede do município ou à capital do estado. Além disso, estavam proibidas ali as reuniões públicas, as festas e confraternizações comunitárias e até mesmo falar italiano ou dialetos regionais.

Neste clima, o chefe de polícia chegou ao largo da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores e decretou, sob a acusação de espionagem, a prisão da estátua do rei Vittorio Emmanuele II. Com alguma dificuldade, o busto do monarca da unificação italiana, o Rei Homem Gentil, foi arrancado do pedestal de sete metros de altura em que descansava desde 1883 e colocado na viatura policial. De lá, foi levado para a sede do município e encarcerado na Delegacia.

A imagem do rei jamais retornaria ao seu pedestal. Rumores dariam conta de que teria sido jogada no Rio Paraíba do Sul, em cujo leito descansaria desde então, esquecida das tragédias humanas.

Na ex-colônia, o medo, a resignação e o distanciamento sufocariam o idioma dos ancestrais. Os laços identificáveis da origem seriam excluídos da exibição pública, dos nomes das lojas e dos estatutos das entidades associativas. Após tantos anos de Brasil, obrigados a optar, quase todos escolheriam ser aquilo que já eram de fato, ou seja, brasileiros. Alguns chegariam a fazer o processo de naturalização.

Como conta Katia Pineschi, descendente dos primeiros colonos, a repressão do período de guerra restringiu as manifestações da cultura italiana. Mas a identidade resistiu onde o poder público não interfere, na vida íntima, nas cozinhas, na culinária preservada em cada prato.

Em 1975, no centenário da chegada das famílias italianas a Porto Real, o pedestal antes ocupado pelo rei Vittorio Emmanuele II passou a abrigar a imagem de um personagem diretamente ligado à história da colônia: o comendador Enrico Secchi, um professor primário contratado para ajudar a organizar a viagem das primeiras famílias em 1874, que se tornara um industrial de sucesso nos primórdios do desenvolvimento do Brasil e deixaria um diário no qual narrava sua participação na trajetória daqueles primeiros imigrantes italianos.

Em 1975, no centenário da chegada das famílias italianas a Porto Real, o pedestal antes ocupado pelo rei Vittorio Emmanuele II passou a abrigar a imagem de um personagem diretamente ligado à história da colônia: o comendador Enrico Secchi, um professor primário contratado para ajudar a organizar a viagem das primeiras famílias em 1874, que se tornara um industrial de sucesso nos primórdios do desenvolvimento do Brasil e deixaria um diário no qual narrava sua participação na trajetória daqueles primeiros imigrantes italianos.

Em dezembro de 2020 a maior responsável pelo recrutamento dos colnos em Concordia Sulla Secchia, Clementina Tavernari, também ganharia um busto em sua homenagem, instalado diante da Casa do Imigrante, enriquecendo ainda mais o acervo do memorial criado em 2012 no Horto Florestal de Porto Real para preservar a memória da ex-colônia.

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Inaugurações dos monumentos a Vittorio Emanuele II e Clementina Tavernati em Porto Real

A história das 50 famílias italianas que se estabeleceram em Porto Real possui elementos semelhantes em fé, sacrifícios e determinação à dos milhões de imigrantes que ajudaram a construir as nações do Novo Mundo. De uma Itália arrasada pelas guerras de unificação do país, que provocaram a falência do sistema de produção e da economia, sem safras a colher ou campos a lavrar, vítimas da fome e da falta de perspectivas, viram na incerteza da emigração uma chance mais viável do que apenas rezar e esperar por tempos melhores.

Deixando parentes, amigos e casas milenares, se lançaram ao mar num veleiro, sem saber ao certo o que viria pela frente. Alguns retornariam anos depois, mas a maioria jamais voltaria à terra dos seus ancestrais e viraria esteio de uma jovem nação.

O relato da verdadeira odisseia destas famílias é a síntese da esperança e da luta para construir um grande futuro na “Mérica”. É o reconhecido testamento de pessoas que, com paixão e dedicação imensos, ajudaram a formar um país, a partir de uma colônia modelo implantada pelo imperador Dom Pedro II.

Que o exemplo deles sirva para que as atuais e as futuras gerações nunca desistam de buscar transformar sonhos em realidade.

Diogo Tavares
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